
A análise faz parte do projeto e parceria Kapoow! & Game Lab ESPM
Vira e mexe aparece na mídia um artigo sobre a banalização da discussão política nos tempos de hoje. Eu particularmente acho essa opinião um lugar comum, mas o fato é que, sim, hoje em dia ficou muito mais fácil discutir política. As redes sociais se tornaram plataformas pessoais operantes 24/7 para a disseminação de visões partidárias de todos os tipos. A Internet está cheia de criadores de conteúdo independentes por todos os lados: nos blogs, nos grandes portais, no Youtube, em páginas e grupos do Facebook. E o presidente, ah, o presidente… Bem, o homem mais poderoso do país faz lives histéricas às 4 da manhã para refutar a maior emissora do país.
Mas falar de política e fazer conjecturas sobre o futuro está longe de ser coisa exclusiva dos dias atuais. Em 1949, George Orwell já projetava um futuro aterrador em sua obra-prima “1984”. No romance distópico de Orwell, a sociedade foi aprisionada por um Estado controlado pelo Grande Irmão, o símbolo maior do regime totalitário que se instalou no mundo.
Claramente inspirado por esse clássico, Beholder 2 chegou, no final de 2018, para também deixar seu comentário político-social como game digital. A trama é muito parecida com 1984: um regime totalitário materializado por um líder antológico, aqui chamado de Wise Leader, toma conta da rotina de toda a população, representada no jogo pelo protagonista Evan Redgrave. Contra sua vontade e por influência do falecido pai, Evan é tragado para dentro do Ministério para atuar como um burocrata do Estado.
A partir daí, passamos a controlar Evan em sua rotina como membro do Ministério e a tomar decisões em seu nome. E são essas decisões possíveis que tornam Beholder 2 um jogo memorável. Podemos optar por fazer escolhas mais éticas e pacíficas, mais revolucionárias (que envolvem conspirar contra o sistema) ou mais moralmente condenáveis, como denunciar amigos para o Estado, manipular documentos e requisições dos cidadãos e mentir. Essas ações ocorrem através do cumprimento de missões e da interação com outros personagens, o que ramifica a narrativa do game, oferecendo ao jogador vários finais possíveis. São mecânicas bem simples, mas o padrão de 1-andar pelos cenários, 2-interagir com os personagens e 3-escolher o que dizer ou fazer, pode cansar no início.
No entanto, o que se destaca em Beholder 2 é seu storytelling bastante imersivo, construído pelo visual soturno completamente em preto e branco e a trilha sonora lúgubre. Isso sem falar nas reflexões e provocações afiadas que o game propõe sobre política, poder, individualidade, ética e liberdade. O jogo tem muito a dizer sobre tais temas e o faz exemplarmente através dos personagens. Evan é a representação do trabalhador ordinário, preso em sua própria rotina inquietante, que precisa negociar diariamente com o sistema para fazer suas ambições e desejos pessoais avançarem. O Wise Leader é a mais pura manifestação do governo autoritarista que consumiu o universo do jogo, um “mito”, símbolo não apenas desse regime ditatorial ficcional, mas de todas as ditaduras terríveis que acometeram o mundo real (e ainda acometem, muito mais do que nossa bolha nos permite observar). É aí que reside o poder das narrativas distópicas: elas retratam futuros assustadores se baseando apenas no presente.
Beholder 2
Lançamento inicial: 2018
Desenvolvedora: Warm Lamp Games
Plataformas: PlayStation 4, Nintendo Switch, Android, Xbox One, Microsoft Windows, iOS, Linux, Mac OS Classic
Nota: 9/10
Sobre o Autor:
David Chiodi
David Chiodi estuda Publicidade e Propaganda na ESPM e é fluente em sarcasmo. Web designer por formação e escritor por insistência, virou estagiário de marketing. O cinema é a sua primeira casa