
Por Fernando Matijewitsch e Mauro Berimbau
O mar sempre despertou a curiosidade do ser humano. Afinal, 70% do nosso planeta é coberto por água e, mesmo após o desenvolvimento de inúmeras tecnologias para a sua exploração, grandes mistérios sobre o fundo do oceano ainda carecem de uma resposta. Em busca de soluções possíveis, criamos histórias, e assim o fazemos com várias outras indagações que possamos compartilhar (vida alienígena, seres sobrenaturais, fantasmas, etc.). É por meio das histórias que tentamos entender o desconhecido, imaginar aquilo que está longe do nosso dia a dia ou fora do nosso alcance.
Em Song of the Deep, a personagem principal compartilha da curiosidade humana pelo oceano e possui uma relação bastante especial com ele. Filha de um pescador, Merryn adora ouvir as canções de seu pai sobre as aventuras que vivia em alto mar todos os dias: encontros com leviatãs, cavernas assombradas, civilizações perdidas e, até mesmo, sereias se misturavam nos acontecimentos narrados. Merryn sabia que não eram verdade, não podiam ser. Eram apenas histórias que a colocavam a dormir e a sonhar com todos os mistérios que existiam sob a água.
Porém, em um dia que parecia comum, o pescador não volta para casa. Merryn sonha com seu pai pedindo por socorro em algum lugar do oceano. Assustada, mas determinada a salvá-lo de qualquer maneira, constrói um submarino com algumas peças de reposição e parte para a jornada que dá início ao jogo.
Com uma estética e narrativa que remete aos livros de infância, Song of the Deep acerta em fazer com que o jogador se sinta dentro de uma das histórias que Merryn tanto ama ouvir. Cenas animadas são ilustradas como se fossem páginas desse livro para crianças, e uma narradora onipresente vai contando todo o desenrolar da narrativa. De certo modo, é como se nós fossemos a criança a ser colocada para dormir e sonhar. Ou será que o mundo que exploramos é a imaginação de Merryn, fantasiando em cima da grande dor da perda de um ente querido?
Infelizmente, não se trata de uma metáfora. De fato, é a história de uma menina que constrói, em uma tarde, um submarino com sucata e vai enfrentar caranguejos e aranhas gigantes no fundo do oceano. Li-te-ral. E isto é um problema.
A publicadora vende o jogo usando dois argumentos principais: 1) É um jogo estilo metroidvania, que envolve exploração e habilidade e 2) Narrativa inesquecível. Mas a experiência de jogo não é tão impactante quanto eles querem nos fazer acreditar. Para explicar melhor os motivos, é preciso observar esses dois aspectos. Começaremos pela sua história:
As canções literais do fundo do mar da obviedade:
Song of the Deep não consegue trazer profundidade para a sua narrativa. A dúvida colocada no início do jogo em relação à veracidade das canções sobre o fundo do mar dura o primeiro minuto de uma cutscene introdutória. A partir do momento em que o jogador toma o controle do submarino, fica imediatamente evidente que tudo que o pescador contava era realidade, inclusive com o reforço confirmatório da narradora.
Quando se toma o controle, iniciamos a jornada em busca do pai de Merryn, que está sumido. Por uma noite. Mas ele está em perigo? Apenas próximo do fim do jogo a história evidencia algum risco para ele. Portanto, a todo momento, estamos passeando pelo fundo de um belíssimo e, ao mesmo tempo, assustador oceano, matando as pobres criaturas que vivem lá. O envolvimento com a personagem, e com a história em geral, demora a ocorrer. E quando se chega perto de uma pista, plot twist! Ele não está aqui – continue procurando. Sensação “Super Mario Bros.” ao derrotar o chefão da fase apenas para que o cogumelo nos diga “ela está no próximo castelo!”. Mas, com uma grande diferença: a história em Mario Bros. é contada pelo seu cenário, monstros e pelas ações do jogador, porque a ênfase está na mecânica. É um jogo de plataforma do tipo “corra para a direita antes que acabe o tempo”. Jogos Metroidvania, no entanto, oferecem tempo ao jogador para que ele explore, procure pistas, veja cutscenes e, ao longo desse processo, compreenda a história.
Essa não parece a preocupação em SotD. A trama, com plot twists simples, é colocada diante do jogador apenas para justificar a extensão do game. São como aqueles animes que tanto amamos que pausam um duelo épico entre vilão e herói para fazer dezenas de episódios sobre coisas sem importância direta ao enredo, com a clara intenção de estender a duração do desenho e prender, aos tortuosos grilhões, a atenção da audiência (Naruto, estamos olhando para você). A prática cruel tem até nome – filler. Só que, ao contrário dos animes, Song of the Deep não consegue desenvolver os seus personagens a ponto de você se identificar com eles e torcer pelo sucesso de suas jornadas.
A tentativa é válida: ao invés do clichê “salve a princesa”, temos um “menina-corajosa-salva-seu-pai”. Considerando que, atualmente, o discurso do empoderamento feminino está tomando conta das discussões sociais, a proposta parece consistente. Mas, de maneira muito curiosa, um jogo que fala sobre as canções das profundezas do mar tem personagens rasos como um pires. Se substituíssemos “Merryn salva seu pai” por “bebê hipopótamo salva a amiga baleia”, nada mudaria. E uma das dificuldades desse envolvimento é de game design.
Explicamos: nós, jogadores, naturalmente nos envolvemos com os personagens que controlamos. Se um amigo passar pela sala durante um game qualquer e te perguntar “quem é você?”, sua resposta será “sou o lutador da esquerda” ou “sou esse carinha com a arma”. Já em uma obra literária como Harry Potter, não dizemos que “neste livro eu sou o Harry”. Há um envolvimento que está limitado pela identificação com o personagem, afinidade com sua forma de pensar ou reagir aos eventos que se desdobram. Nos games, os protagonistas somos nós. Você não é o Harry quando lê o livro, mas você é o Harry quando joga seu game. Seu fantoche digital até pode ter uma história por trás, mas é o jogador que domina todas suas vontades e habilidades.
Em Song of the Deep, você vê a história de Merryn, mas o que você realmente controla é o submarino. Ou seja, você é o submarino e, portanto, nosso envolvimento é com ele. É ele que melhora, cresce, se desenvolve, fica mais forte. Merryn é aquele bonequinho que fica lá dentro e, eventualmente, sai para pegar algum item do lado de fora. Merryn funciona como um power up do personagem que realmente nos envolvemos.
Portanto, Song of the Deep até possui uma boa premissa, mas não consegue desenvolvê-la de maneira satisfatória visando o interesse do jogador pela história e pelos personagens envolvidos. O game, inclusive, termina com um gancho para uma possível continuação, contando que Merryn sentirá saudade dos amigos que fez durante sua jornada no fundo do mar. Já nós, jogadores, não sentiremos, pois foram tão mal desenvolvidos quanto os protagonistas. Isso apenas reforça a ideia de que estabelecer franquias é visto como essencial para a indústria de jogos hoje em dia, ainda mais para uma publisher que acabou de entrar no mercado e busca com Song of the Deep o seu primeiro sucesso.
Assim sendo, fica claro, desde o começo, que o jogador seguirá uma história repleta do óbvio, que terminará com Merryn salvando seu pai. No mundo dos games, isto por si só não é um problema. Vale lembrar que nos motivamos por muito menos. Afinal, você escolhe o Zangief em Street Fighter porque acha ele legal ou competitivo, não porque está motivado mostrar a força da Mãe Rússia. As motivações tendem a ser mais em termos das regras do jogo e suas possibilidades do que das histórias que os jogos nos contam. Mas isso implica no seguinte: se o seu game não tem uma história boa, é importante que ele seja mecanicamente bom. O que nos leva à segunda etapa da nossa análise: a mecânica Metroidvania.
O que é Metroidvania?
Metroidvanias são, essencialmente, jogos de exploração. E isso combina com o tema do fundo do mar. Há tanto para se ver! Os cenários no game são maravilhosos, muito bem ilustrados. Longas e profundas cavernas de escuridão, cemitério de navios, um recife de corais e até uma cidade submarina podem ser visitadas ao longo da aventura.
Em suma, o estilo metroidvania permite:
- Escalonar a dificuldade lentamente para o jogador: o sistema de pontos de XP é uma saída estratégica para colocar inimigos mais difíceis ao longo do avançar das telas/fases, e permitir que o jogador, em seu próprio tempo, esteja hábil para enfrentá-los. Sendo assim, o jogador não depende unicamente da sua própria habilidade em apertar botões na hora certa para se esquivar “daquele” golpe do chefão. O personagem que controla também evolui, fica mais forte conforme o jogo avança e, se você não for lá muito habilidoso, pode derrotar o chefão se estiver num nível alto o suficiente.
- Colecionismo: alguns jogadores simplesmente não conseguem resistir à tentação. Você precisa descobrir todos os itens, passagens secretas, monstros, mapas e o que mais o jogo tiver. Enquanto a interface não der o feedback do “100% do game completo”, não ficará satisfeito. Ter um amplo leque de itens, habilidades e monstros amplia a experiência do game para quem gosta de explorar o game até ter a sensação de esgotá-lo, completamente.
- Exploração: De modo semelhante ao ponto anterior, os exploradores querem descobrir o que o jogo tem a oferecer. Está relacionado ao colecionismo, pois o jogador que procurar explorar as possibilidades do game acaba cumprindo boa parte dessas tarefas, mas com uma grande diferença: ele gosta de conhecer o diferente, sem a necessidade da completude. Assim, a diversidade de mapas e criaturas é muito mais interessante do que matar o mesmo monstro centenas de vezes apenas para que ele derrube o raríssimo e inútil chapéu verdinho. A sensação de exploração, portanto, surge no momento que se encontra um chefão diferente, abre-se um novo espaço do mapa, acessa-se aquela porta no início do game que parecia intransponível, encontra-se um novo equipamento que muda parcialmente a forma como você joga.
No grande mapa de Song of the Deep, com cenários variados e belíssimos, passear sem compromisso por alguns lugares já é uma experiência agradável, o que torna a busca por tesouros escondidos muito divertido. O problema está na variedade de monstros: enfrenta-se sempre a mesma dúzia de inimigos, e entre eles há pouca variação. O único chefão realmente interessante é a aranha gigante “The Watcher”. Além disso, o caminho principal a seguir é sempre bem claro. Talvez, exageradamente claro. Há sempre um enorme X no mapa apontando qual o próximo lugar para ir, o que retira um pouco a sensação de exploração.
O destaque dado pela produtora do jogo aos 200 tesouros para coletar evidencia mais um problema de exploração: coletar todos ou apenas alguns não faz qualquer diferença para o game. Na nossa experiência, conseguimos construir todos os upgrades do submarino deixando vários desses tesouros para trás. Ao fim do game, sobrou dinheiro, e a coleta parcial ou total de tais tesouros não foi recompensada. Jogamos o game em hard, a dificuldade maior disponível, e as batalhas ficam realmente fáceis depois que se descobre o torpedo. Os dois recursos principais, energia do submarino (quando acaba, você morre) e energia da arma (quando acaba, você não dispara torpedos) são reabastecidos a cada monstro que você derrota, deixando o desafio bastante baixo.
Tudo isso reforça um ponto que já abordamos: este é um jogo com uma história para crianças ou pré-adolescentes, de controle relativamente complexo, o que implica num jogo bom para jovens que já tenham alguma experiência com videogames. Porém, apesar de parecer um bom jogo para esse público mais jovem, está disposto na loja da Steam para qualquer jogador, sem distinção de público-alvo. Isso nos leva ao último ponto da análise, e no grande problema de Song of the Deep: o marketing.
GameStop como publicadora, posicionamento e público-alvo
A Gametrust, responsável por publicar Song of the Deep é uma empresa nova, que traz com ela algo importante para a indústria dos jogos digitais. Trata-se de uma publicadora da varejista GameStop, americana que está no mercado desde 1984 e, hoje, com lojas em diversos lugares do mundo. Além de vender jogos, também oferece conteúdo jornalístico e de entretenimento sobre jogos digitais através da Game Informer. Em outras palavras, sempre estiveram com forte contato com o consumidor final e agora, dando um passo para trás na cadeia produtiva, estabelecem contratos com desenvolvedores de jogos para publicarem seus próprios games.
Como empresa, sua proposta parece ser a de impulsionar a indústria indie americana, fechando contratos e parcerias com desenvolvedores relativamente pequenos quando comparados aos gigantes da indústria e seus orçamentos milionários. Trata-se de dar uma oportunidade de negócios para as empresas pequenas com grandes ideias e dificuldades de se posicionar no mercado.
No entanto, para uma empresa que tem tanta experiência e contato com o consumidor final, esperávamos mais com relação ao acerto com o público-alvo de seu game. Por que não posicionar claramente SotD para o público infantil? Talvez a resposta esteja nos limites da loja digital, e não no seu papel enquanto publicadora.
A associação americana de marketing[3] entende público-alvo como “a porção da população total que é identificada (visada) pelo comerciante ou revendedor como aquela que está mais propensa a comprar seus produtos ou serviços”. Então, quando dizemos que SotD é um jogo infantil, não estamos afirmando que apenas as crianças devem jogá-las. Mas que se trata de um produto mais interessante para esse público. Assim, reforçamos: o jogo parece bom para crianças entre seus 9 e 12 anos de idade que já tem alguma experiência com jogos digitais.
Mas como identificar isto na loja? Ao analisar este game, percebemos um sério problema nas principais lojas de jogos que existem hoje no mercado – não existe qualquer divisão de produtos por público. No máximo, um aviso “para maiores de 18” que bloqueia o acesso, facilmente transponível ao afirmar uma idade falsa, colocado no sistema do website exclusivamente por questões legais.
Nos anos 1980 e 1990, a indústria dos jogos digitais era dividida grosseiramente entre dois grandes públicos-alvo: crianças do sexo masculino que amavam seus videogames, e homens adultos que jogavam em PCs. Depois dos anos 2000 e especialmente após o aumento expressivo do consumo de celulares smartphones, é possível afirmar que o mercado de jogos digitais ganhou maturidade suficiente para comportar todo o tipo de jogador. O Atari 2600, o avô do videogame contemporâneo e conhecido por ter fundado a lógica da indústria dos games, mundialmente conhecido como o símbolo do jogo digital, vendeu entre seus quase 10 anos de existência no mercado 30 milhões de seus aparelhos. Durante o mesmo período de existência, o Playstation 3 vendeu mais de 86 milhões, com o recordista sendo o Playstation 2, vendendo 157 milhões de aparelhos[4]. Considere ainda quantidade de celulares smartphones, importantes por seu acesso ao consumo de internet e consequente acesso a filmes, fotos e jogos, que bate hoje a casa de 2 bilhões de aparelhos pelo mundo[5].
Em outras palavras, existem mais jogadores hoje. Diferentes idades, sexos, motivos, perfis, desejos, gostos, experiências de vida… todos procurando jogos com que tenham afinidade. Portanto, do ponto de vista mercadológico, é errado as lojas de jogos atuais oferecerem games como se estivéssemos em uma feira popular, com jogos amontoados em pilhas e promoções aos gritos. É a estratégia do volume, da quantidade, da intenção da venda aos bilhões. Ainda que isso seja sempre desejável, nem sempre funciona. É mais garantido que você se direcione ao público que provavelmente vai gostar do seu produto, convencendo e encantando um bom punhado de jogadores do que ser mais um feirante genérico na baia nº 500 da loja digital dos milhões de transeuntes. Classificar um game como “metroidvania” e outras hashtags não é suficiente para posicionar o jogo para algum mercado – como Song of the Deep nos demonstrou.
Se você, além de gamer, é também pai ou mãe, deve sentir dificuldade de indicar jogos que se adequem às habilidades ou gostos de seu filho. Imagine então para os pais que não são gamers e pouco conhecem do mundo contemporâneo dos jogos digitais pois interromperam suas experiências nos anos 1980 e 1990, ou ainda conhecem apenas os destaques da loja de seu smartphone. Não é à toa que muitos pais queiram limitar o consumo de jogos de seus filhos – não há um posicionamento claro de quem desenvolve ou quem publica sobre a experiência de jogo.
As lojas digitais precisam deixar de ser a grande feira da bagunça e da promoção e se tornar o shopping center do consumo lúdico-digital. Há o espaço para crianças, meninos e meninas, para adultos, jovens casais, solteirões, senhoras e senhores. Posicionamento evidente para diferentes gostos, perfis e necessidades. O mercado de jogos digitais é maduro o suficiente para essa organização. Mas enquanto desenvolvedores e publicadores estiverem sobre as estritas regras do distribuidor (AppStore, Google Play, Live, PSN, Steam etc.), preocupados muito mais com o volume das vendas do que a qualidade da comunicação com públicos-alvo, dificilmente teremos progresso.
Nota: 7
[Para o leitor objetivo, adiantamos: Song of the Deep é um livro infantil em formato de game ao estilo Metroidvania, com sérios problemas de posicionamento de público-alvo. Utilizamos nosso contato com o game para explicar melhor o que é esse estilo de jogo e os problemas de marketing que ficam implícitos ao longo da experiência. Ao final, sentimos que tratamos um Almanacão de Férias da Turma da Mônica como um livro de Machado de Assis, hiper analisando uma obra que tem pouco para oferecer.
Como não nos sentimos controlando a Merryn, pedimos a opinião das criaturas do oceano, que avaliaram o game muito mal. “Águas-vivas, peixes-lanterna e caranguejos viviam pacificamente no fundo do mar até a chegada dessa louca furiosa querendo fazer sushi da galera!”, nos disse um camarão. A Marinha a avaliou muito bem e estuda a contratação de Merryn por ter construído sozinha um submarino, numa tarde, com lixo do quintal. No final das contas, considere um 7 uma boa média para um game não tão cumpridor de suas promessas, mas ainda assim, bom.]
[1] AMERICAN MARKETING ASSOCIATION. Dicionário. Common Language Marketing Dictionary: the global resource for defining marketing terms, 1995. Disponivel em: http://www.marketing-dictionary.org/home. Acesso em: agosto 2016.
[2] Confira estes e mais dados sobre a indústria em http://www.vgchartz.com/analysis/platform_totals/. Último acesso em agosto de 2016.
[3] Do site Statista. Disponível em http://www.statista.com/statistics/330695/number-of-smartphone-users-worldwi
de/. Último acesso em agosto de 2016