Ocasionalmente, o Onírico e o Real se cruzam para criar uma situação Hiper-Real. Algo que todos podemos olhar e concordar “claro, isso faz perfeito sentido. Essa ideia precisava acontecer”.
É a situação perfeita que só poderia acontecer em um filme no qual Nicolas Cage aparece simultaneamente nos sonhos de toda a população mundial.
Essa premissa cativante só poderia ter acontecido com Nic Cage. Chegamos em um momento de sua carreira onde todos conhecem o homem por alguma coisa absurda, seja absurdamente boa ou tenebrosa. Afinal, a trajetória de Cage já lhe rendeu um oscar por um papel super sério como um alcoólatra suicida em Despedida em Las Vegas, o levou a trabalhar com mestres como David Lynch em Coração Selvagem, ou Martin Scorsese em Vivendo no Limite, bem como papeis interessantíssimos do cinema independente mais recente, como em Pig, Mandy e A Cor Que Caiu do Espaço. No outro lado da moeda, essa carreira já o levou a trabalhar em bombas completas, como o remake asqueroso de O Homem De Palha, e uma penca de filmes que foram lançados direto para Streaming ou DVD.
O fato é que Nic Cage já tem uma carreira que conta com quase 100 créditos de atuação. Dos mais aclamados até as bombas mais inassistiveis (apesar de que essa característica nunca é por sua performance).
Todos esses fatos até já renderam uma outra análise cómica na forma de um filme, com o hilário O Peso do Talento.
O Peso do Talento lida com a carreira de Cage a partir de uma ótica puramente mercadológica e cinematográfica. Brincando um pouco com a história de vida do ator, enquanto faz uma análise genuinamente divertida e honesta de sua carreira, com todos os seus sucessos e fracassos.
Enquanto isso, a ideia de O Homem dos Sonhos, do original Dream Scenario, brinca muito com a ideia de Cage enquanto figura memética e fenômeno cultural. Mas, dessa vez, apenas com a figura do astro, já que a história contada é completamente original.
Aqui, acompanhamos a saga de Paul Matthews, interpretado por Cage, um professor universitário completamente medíocre que começa a aparecer nos sonhos de diversas pessoas ao redor do mundo.
Paul é uma pessoa simples, com grandes ambições mas pouquíssima motivação. Paul é um professor universitário de biologia, tem uma turma modesta, relativamente interessada em sua matéria. Paul tem um casamento comum, um tanto morno, mas satisfatório. Paul tem duas filhas adolescentes.Paul está há 20 anos tentando escrever um livro. Ele não quer levar sua ideia para as editoras, por não ser influenciado por nenhuma ideia corporativa, mas ao mesmo tempo ainda não chegou na parte de “sentar e escrever” o livro.
Tudo isso para dizer que Paul é uma pessoa que leva uma vida bem comum, não consegue se destacar em nada apesar de seu potencial. Teve uma ideia brilhante no início de sua carreira, mas por sua inatividade acabou perdendo a descoberta para uma colega da época.
É justamente nesse momento que começamos a acompanhar a vida do professor, quando ele tenta, sem sucesso, reivindicar uma posição de co-autor desta tese.
A vida deste homem acaba virando de cabeça para baixo, quando todos ao redor do mundo começam a relatar sonhos em que Paul aparece em alguma capacidade.
O fenômeno vai se revelando de forma gradual. Alguns alunos conversam durante a aula sobre o fato do professor estar aparecendo nos sonhos de ambos, algumas pessoas pensam ter Deja-vu ao ver o homem, com toda sua normalidade apenas existindo no mundo.
As coisas fogem de proporção quando um artigo é publicado por uma de suas ex-namoradas, e de repente a família Matthews se vê no meio de um circo midiático, com direito a entrevistas, importunação por meio de fãs fervorosos do fenômeno e até culminando em uma invasão domiciliar.
A partir dessas situações, começamos a entender de fato o que o filme realmente está propondo. Um estudo de personagem.
Ou mais especificamente, as hipóteses de o que poderia acontecer caso um homem medíocre e sem fibra como Paul Matthews se tornasse a maior sensação cultural do momento do dia para a noite.
Defendo que este filme só poderia ter acontecido com Nic Cage no papel. É inegável que existe aqui um paralelo entre aparecer nos sonhos de todo mundo e ser um fenômeno midiático tão proeminente quanto este homem provou ser nos últimos anos.
Muita gente conhece seu trabalho, por conta da enorme quantidade de filmes que ele fez. Ditos filmes também abrangem os mais diferentes públicos, de fãs de comédias românticas, a dramas sisudos, comédias surtadas e filmes de ação explosivos.
Quem não o conhece por seus filmes, com certeza já viu o rosto do ator em algum meme ou trecho viral de um de seus quase 100 projetos.
Existe aqui, também uma conexão interessante com alguns fenômenos que normalmente são discutidos na internet, e inclusive são citados aqui, o “Já sonhou com esse homem?” e o “efeito Mandela”.
Estes são, respectivamente, um suposto fenômeno dos sonhos no qual um homem de aparência muito distinta aparece nos sonhos alheios, e uma falsa memória reportada de forma semelhante por um grupo diverso de pessoas.
O que quero dizer com tudo isso é, se você identifica de cara alguma dessas histórias que mencionei, ou é fã assíduo de Nic Cage enquanto entidade midiática/pessoa, o Homem dos Sonhos é com certeza um filme que vai dialogar bem com você. Mais ainda se, como eu, tem um apreço pelos dois elementos aqui citados.
Acho que é algo parecido com o que acontece em We’re All Going to The World’ s Fair, filme nada relacionado mas que também pode ser melhor apreciado caso o espectador carregue alguma bagagem mais específica.
Em O Homem Dos Sonhos, vale mais esperar uma comédia do que qualquer outra coisa. E é uma comédia bem feita, com cenas e sequências genuinamente hilárias, outras fantásticas que dependem muito de um humor vergonha alheia, o popular “cringe” que nossos jovens tanto gostam de falar, mas que também sabe fazer cenas interessantes de drama.
O final do filme, então, só seria mais comovente se a figura de Matthews fosse menos cretina, já que é um momento genuinamente tocante sobre a conexão dele com sua esposa. Mas, as escolhas do personagem que o levam até esse final justificam bastante o que acontece com ele.
Acho que meu único lamento com o filme é que eu estava esperando algo muito mais, vamos dizer, surtado, do que realmente acaba acontecendo.
No início, os sonhos onde Paul aparece o retratam como um observador, alguém que está apenas transitando em uma situação onírica absurda. Às vezes ele até fala. Ou faz algo mais esquisito. Mas normalmente não faz muito.
Isso é um ponto onde o personagem até reflete um pouco. Será que sua passividade na vida acaba causando essa imagem nas pessoas? Por ele tomar poucas atitudes para se destacar, ou mudar de vida, as pessoas só o enxergam como um pedestre transitando pela vida?
Bom, isso fica a seu critério, caro espectador.
Mas sim, saiba que o personagem de Nic Cage aparece em um sonho erótico. Não, não vou detalhar mais nada.
Tudo muda bastante quando Paul também passa a habitar os pesadelos das pessoas. E as consequência disso são terríveis.
Todos os projetos que ele estava trabalhando vão por água abaixo. Sua família começa a ser hostilizada por pura associação a sua figura. Seus alunos abandonam o curso onde ele leciona. Tudo isso por conta de uma percepção alterada das pessoas sobre Paul.
Lógico, o homem é patético, infiel e não tem um pingo de fibra para sustentar suas ações. Mas é completamente inofensivo, e vê-lo sendo hostilizado dessa forma é de causar incômodo.
Mas o filme usa esse artifício narrativo para criticar outra coisa, a Cultura do Cancelamento.
Transformar uma figura em Persona non Grata apenas por uma percepção generalizada de sua imagem pode causar efeitos drásticos na vida de alguém.
O filme explora isso de uma maneira um tanto similar ao que aconteceu em A Caçada, de Thomas Vinterberg. E, para parafrasear uma resenha que achei no Letterboxd, vale dizer que O Homem dos Sonhos é uma versão hilária de A Caçada.
Nunca achei que escreveria algo assim na minha vida.
O que quero dizer com tudo isso é que o filme é muito mais pé no chão do que a premissa e o material promocional acaba indicando. Não espere um filme com muitos surtos de Nic Cage, pois não é aqui que os verá. Inclusive, temos aqui uma das performances mais sóbrias do ator.
A composição de Cage é bem interessante, e ele consegue vender muito bem o papel de um homem medíocre e meio patético, mas que acaba se revelando como uma pessoa com lados bem podres. E mesmo assim não deixa de causar simpatia.
Ainda nos aspectos técnicos, gosto muito da direção de Kristoffer Borgli neste filme. O diretor trabalha muito bem com planos escuros, bem com planos que têm grande contraste entre luz e sombras.
E era necessário também criar sequências oníricas satisfatórias, e o diretor tira essas de letra também.
Aproveitando também minha perspectiva como alguém formado em Marketing, os momentos nos quais a marca Sprite foi citada foram genuinamente hilários. A cena onde Paul está em uma agência publicitária é um dos momentos mais divertidos do filme.
O Homem Dos Sonhos é divertido, hilário e tem pontos importantes a serem discutidos. O filme tem um coração muito grande e consegue prender bem a atenção durante toda sua duração.
Também não é um filme que gruda bastante na cabeça. Deixá-lo marinando sobre possíveis interpretações e significados têm sido uma ótima experiência para mim. A falta de um Nic Cage mais surtado só vem por consequências das minhas expectativas, não por nenhum demérito do filme.
Admito que a sequência final do longa vai ficar na minha mente por um bom tempo.
Por tudo isso, a nota final para o Homem dos Sonhos é um 8/10!.
E agora, se me dão licença, vou voltar para meus sonhos, esperando não topar com nenhum Nicolas Cage nem refrigerantes Sprite.